segunda-feira, 26 de junho de 2017

O crepúsculo de um ídolo: Foucault (e o niilismo de cátedra)

Havia realmente uma necessidade de erguer-se contra a sabedoria convencional daquela nebulosa mentalidade de Kulturkritik que, depreciando tanto a história como a liberdade, por tanto tempo assombrou, como teoria meio crua, o destino do pensamento na França contemporânea.

José Guilherme Merquior (in “O renascimento da teoria política francesa”)

O ataque contra a antiga herança cultural não conduz a uma nova forma de associação, mas somente a uma espécie de alienação. É por essa razão, parece-me, que devemos ser conservadores culturais. A alternativa é um tipo de niilismo que se esconde sob a superfície dos textos de Rorty, Said, Derrida e Foucault.

Roger Scruton (Como ser um conservador)

Foi no ano em que os militares permitiram o retorno de políticos civis à presidência da República brasileira que José Guilherme Merquior publicou Foucault. Era seu décimo sexto livro, originalmente redigido em inglês. Como quase sempre, não tardou a aparecer (já em 1985) edição traduzida. O volume dava mais uma amostra do empenho merquioriano em travar diálogo em âmbito internacional, e certificava a permanência da sua disposição combativa em avaliar as mais influentes linhas de pensamento da época.

Foucault ou o niilismo de cátedra, sem perder o caráter ensaístico – marca da linguagem de Merquior –, constitui um bloco monográfico, um tijolo feito todo da mesma matéria, que Merquior arremessava em direção às cabeças contraculturais do que ele se aprazia em denominar de humanismo irracionalista. A esse livro se seguiriam, com estreitos laços de parentesco, The Western marxism (1986), From Prague to Paris (1986) e Liberalism: old and new (1991). Note-se que os quatro títulos coincidem na língua estrangeira em que foram escritos e na unidade de concepção, quero dizer, foram planejados, ab ovo, para serem livros. E repare-se: os três primeiros comungam da intenção de refutar (respectivamente, a validade científico-acadêmica da obra foucaldiana; a validade político-filosófica do marxismo ocidental; e a validade epistemológica do estruturalismo e do pós-estruturalismo) e o último expressa, por sua vez, uma intenção de afirmar (no caso, a diversidade, a legitimidade e a superioridade da tradição e do ideário liberais. Com isso, as quatro obras formam uma tetralogia irmanada no objetivo de lançar o programa merquioriano de reedificação ideológica do século XXI.

Adotemos a conhecida demarcação cronológica de Eric Hobsbawm, para quem o século passado tem início em 1914, deflagrada a Primeira Guerra Mundial, e fim em 1991, quando se esfacela a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS). Gosto de destacar coincidências de datas, embora, no mais das vezes, não compreenda tais coincidências como algo muito além de encaixes de calendário, com algum poder simbólico.

Assim: a acima referida tetratologia merquioriana coincide, em termos de período de publicação, com dois eventos capitais, um na história brasileira, outro na história mundial, do “Pequeno Século XX”: respectivamente, o fim do regime civil-militar e o fim da Guerra Fria. O novo cenário cujas cortinas ambos os eventos abriram parecia requerer novo roteiro ou, pelo menos, novas coordenadas de atuação. Eis no que José Guilherme Merquior procura contribuir com aqueles quatro títulos fundamentais de sua obra. Antes de tudo, convencer que os inimigos maiores da modernidade burguesa e capitalista estavam vencidos, na experiência da realidade concreta, conquanto poderosos ainda na esfera mental: o marxismo e o pensamento (ou o antipensamento) contracultural arraigado nas universidades do Ocidente, traduzido então em psicanálise, arte de vanguarda e pós-estruturalismo. Em seguida, esclarecer a história e apresentar as credenciais do liberalismo, em que se enfeixariam as ideias de racionalismo, de ciência, de liberdade, de democracia... ideias essas precisamente desacreditadas pelo conjunto dos estudos de Michel Foucault (1926-1984), um dos pensadores mais influentes da segunda metade do século passado.

De fato, a obra foucaldiana tornou-se importante fundamento para a visão contestadora do establishment ocidental, na medida em que denunciava, em perspectiva arqueológica, toda uma multissecular opressão dos grupos sociais dominantes. Nesse entendimento, os loucos, os criminosos, os estudantes, os operários, os fiéis, os pacientes e o corpo humano eram vítimas preferenciais da estrutura racional e moral burguesa, dentre cujos atos se destacariam o de vigiar e o de punir, numa rede nem sempre sensível e ostensiva (a política e a polícia, p.ex.), mas também sutil e quase imperceptível na microfísica do poder (atuante na psiquiatria, no sistema penal e escolar, nas fábricas, nas igrejas, nos costumes etc).

Antes do livro de 1985, José Guilherme Merquior já tinha enriquecido a recepção brasileira da obra do filósofo (?) francês. Segundo Eduardo Portella, em torno de 1970, quando ainda não se dispunha, no Brasil, de “um conjunto sistemático de textos que descrev[esse] a sua obra [de Foucault] e procur[asse] situá-la nas grandes correntes do pensamento moderno”, (2008, p.9) a convite do recém-falecido editor da Tempo Brasileiro, Sérgio Paulo Rouanet e Merquior entrevistaram o autor de As palavras e as coisas, para que as perguntas e as respostas fossem publicadas em volume. E estas vieram a integrar O homem e o discurso (1971).

Diferentemente do livro de 1985, não se verifica no registro daquela entrevista nenhuma crítica incisiva, seja à abordagem, seja às conclusões da então já bem constituída obra de quem era uma das estrelas de primeira grandeza da França estruturalista. De fato, ambos os entrevistadores mostraram-se mais interessados em obter esclarecimentos relativos à trajetória percorrida e a percorrer do pensamento do entrevistado.

Aliás, por isso mesmo é bem provável que o leitor familiarizado com o texto merquioriano – erudito, assertivo, contestador – estranhe ou se decepcione com sua participação, um tanto quanto harmonizadora. Para dizer a verdade, as perguntas de Rouanet parecem ter mais consistência e despertam mais interesse tanto do entrevistado quanto do leitor do que as de Merquior. Todavia, em depoimento ouvido na ABL a 4 de outubro de 2001, Sérgio Paulo Rouanet garantiu que seu companheiro, nessa entrevista histórica,

[...] disse as coisas mais brilhantes e mais impressionantes, enquanto eu balbuciei meia dúzia de coisas ininteligíveis. Mas, depois, como coube a mim a tarefa de editing, eu arrumei tudo de uma maneira tão tendenciosa que dei a impressão de que as minhas perguntas tinham sido tão inteligentes quanto as de José Guilherme. Foi uma falsificação, porque as únicas coisas inteligentes da entrevista foram as ditas por Foucault e por José Guilherme Merquior. (2001, p.253)

Fosse como fosse, diante da “edição” dessa entrevista, em Foucault ou o niilismo de cátedra, Merquior é quase outro Merquior: para dizer o mínimo, toneladas de páginas mais lido e refletido, e por isso muito seguro dos efeitos nocivos das correntes filosóficas contraculturais em voga na época, especialmente no meio acadêmico e intelectual brasileiro, contaminado este, no fácil diagnóstico de Luiz Costa Lima, pelo “nosso culto da improvisação” e pelo estado de “dependência cultural”. (cf. 1991, p.272-273) Elemento atípico da tabela periódica nacional, José Guilherme Merquior talvez, na condição de ensaísta por natureza, tenha cometido alguns improvisos de ideias. Entretanto, ao longo de toda sua trajetória de crítico e pensador, sempre fez questão de impor sua pessoal independência cultural frente a qualquer novidade importada – é o que comprova, dentre outros títulos de sua lavra, Foucault e o niilismo de cátedra.

Quando Merquior dava a lume esse livro, Michel Foucault tinha falecido havia pouco tempo (em junho de 1984). Todos os títulos importantes do autor francês já estavam publicados. E o ensaísta brasileiro encampou o propósito admirável, hercúleo mesmo, de discutir a totalidade dessa bibliografia ativa, além de munir-se de leitura de diversos comentaristas da obra foucaldiana e outras mais numerosas referências atinentes ao debate.

Antes de avançar nesta resenha do livro em pauta, não resisto a escrever algumas linhas sobre o aguçado faro “editorial” de Merquior. Houve quem o acusasse de se valer, oportunista, dos vários assuntos em moda ao longo de sua vida – Escola de Frankfurt, estruturalismo, psicanálise... – para tornar-se um intelectual famoso. Talvez o objeto dessa acusação não seja falso. Mas isso não implica necessariamente que o ensaísta, assim procedendo, incorresse em atitude recriminável. E vejamos: se a publicação de Foucault coincide com o falecimento recente do próprio Foucault, podemos lembrar aqui também da tese Verso universo em Drummond defendida em 1972, quando o poeta itabirano completava 70 anos de idade. De volta à resenha:

No propósito de apontar as defi-ciências da obra foucaldiana, José Guilherme Merquior a enquadra, logo nos primeiras páginas, numa linhagem que denomina de “lítero-filosófica”, marcada esta por nela “alia[r-se] a brilhantes dotes literários uma teorização desbragadamente liberta de disciplina analítica”. (1985, p.12)

Tal percepção, Merquior foi extraí-la de Ernest Gellner, seu orientador no doutorado em Sociologia pela London School of Economics. Para o famoso teórico da nação e do nacionalismo, citado numerosas vezes no volume do então ex-orientando, evidencia-se nos textos daquela linhagem, prestigiosa na França, um “machismo intelectual”, na medida em que “a força de um argumento não é sustentada por sua qualidade lógica – é transmitida pela inabalável autoconfiança de quem o enuncia”. (1985, p.243)

Sendo assim, talvez possamos aproximar a imagem do pensamento de Foucault delineada no livro de Merquior ao ídolo do teatro, conforme tipologia de Francis Bacon, descrita por Bolívar Lamounier nestas palavras:

Os ídolos do teatro solapam o nosso senso crítico e nos induzem a aceitar certas ideias e teorias não por seu valor intrínseco, mas pelo pretenso saber de quem as enuncia. Essa advertência baconiana diz respeito aos riscos a que podemos ser levados por uma deferência excessiva em relação a determinados autores ou escolas de pensamento, ou por uma admiração devida menos a seu mérito intrínseco que à importância que lhes é socialmente atribuída, ou que eles mesmos se atribuem.” (2016, p.19-20)

Trata-se, está claro, de dimensões distintas – o “machismo intelectual” reside na escrita; o “ídolo do teatro”, na figura autoral), mas sem dúvida elas se tangenciam nesse caso. Seja como for, nota-se que a investida merquioriana contra o filósofo-rebelde francês é dura, desde o primeiro round. A análise campenga, conquanto estilosa e cheia de testosterona, se construiria de perspectivas, informações e interpretações históricas imprecisas ou equivocadas. Mas no peito desse brutamontes argumentativo há um coração que bate. Pois a denúncia, respaldada em Lawrence Stone, Klaus Doerner, entre outros, ao se concentrar na História da loucura, por exemplo, pontua: “Em essência, o livro de Foucault é uma argumentação passional contra aquilo que aprendemos a ver como sendo o humanitarismo do Iluminismo”, (1985, p.40) pois:

A acusação de “sadismo moralizante”, aplicada por Foucault à infância da psiquiatria, é um exemplo de melodrama ideológico. É muito bom tomar posição du côté de la folie [favorável à loucura] – só que, na ânsia de se colocarem os insanos no papel de vítimas da sociedade, pode-se facilmente esquecer que muitas vezes eles são profundamente infelizes e que o flagelo de que padeciam exigia terapia.” (1985, p.40)  

De fato, essa espécie de crítica social – de perigosa ênfase libertária – contra os paradigmas da civilização ocidental, a se autointitular porta-voz dos humilhados e ofendidos pela modernidade, pela sociedade burguesa, como muito bem destaca Merquior, vem a resultar, em última instância, num despautério irresponsável e sujeito, na prática, a ultrajantes contradições e consequências. Facilmente se pode entrever, no espírito compassivo foucaldiano, um substrato de origem cristã. Para falar mais claro: a tomada de partido em favor dos oprimidos, postura que se arrogam autores como Foucault, não parece negar a gênese religiosa que eles mesmos pretendem refutar e combater. Além disso, até aonde nos levaria a consumação do projeto libertário? Pois aí a liberdade dos mais frágeis e desamparados coexistiria com a liberdade dos mais fortes e opressores. No fim das contas, portanto, em vez de se eliminar as condicionantes da violência, esta seria exponencialmente agravada: afinal, por que revoltar-se perante um estupro coletivo de uma garota de 16 anos de idade, se os agentes do crime são “livres” para cometê-lo?

Há outras contradições importantes que José Guilherme Merquior realça. Uma das quais envolve a questão da inexistência da verdade, pauta central das críticas de pretenso caráter nietzschiano do autor de As palavras e as coisas. Quanto a isso, o ensaísta fluminense escreve: “[...] qualquer que fosse o tipo de historiografia que pretendesse fazer – a dos historiadores ou qualquer outra –, Foucault era o primeiro a afirmar que as provas estavam a seu lado.” (1985, p.222-223) Ademais: “[...] no fundo o projeto de Foucault parece atolado num gigantesco dilema epistemológico: se exprime a verdade, então todo saber é suspeito em sua pretensão de objetividade; nesse caso, porém, como pode a própria teoria dar testemunho de sua verdade?” (1985, p.227)

Em contrapartida, Merquior reconhece grandes contribuições e méritos na obra de Michel Foucault, quem, como raros humanistas da época, era “capaz de discutir a gramática de Port-Royal, os naturalistas anteriores a Darwin ou a pré-história do moderno sistema penitenciário”. (1985, p.19) E também:

Examina grande quantidade de vetustas obras poeirentas em cada um desses campos [“linguística, história natural e economia”], e novamente nega aos expoentes mais notórios seus privilégios habituais. Descartes recebe tantas menções quanto obscuros gramáticos; a história natural de Lineu e a economia de Adam Smith são tratadas em pé de igualdade com vários autores muito menos conhecidos hoje em dia. Essa atitude pouco convencional merece louvor, pois possibilita ao historiador do pensamento lançar um olhar novo sobre muitas ligações perdidas ou sepultas. (1985, p.68-69)

Esse reconhecimento de Merquior, aliás, comprova sua visão muito menos submissa ao status quo cultural do que alguns conseguem imaginar. Finalizo este post, já demasiado longo, mencionando pelo menos a polêmica havida entre o autor de As ideias e as formas e seu amigo Sergio Paulo Rouanet em torno da divergência sobre as possibilidades atualizadoras do iluminismo, dentre as quais a obra foucaldiana, no que Rouanet acreditava, mas não Merquior. Parte unilateral (infelizmente) do registro desse valioso episódio da história de nossa inteligência consta no volume, de título tão merquioriano, As razões do iluminismo (1987). Vale a pena a leitura.
  
Referências bibliográficas

LAMOUNIER, Bolívar. Liberais e antiliberais: a luta ideológica do nosso tempo. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.

LIMA, Luiz Costa. “Dependência cultural e estudos literários” in Pensando nos trópicos. Rio de Janeiro: Rocco, 1991. pp.266-278.

MERQUIOR, José Guilherme. Foucault ou o niilismo de cátedra. Trad. Donaldson M. Garschagen. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.

PORTELLA, Eduardo. “Apresentação” in FOUCAULT, Michel et alii. O homem e o discurso: a arqueologia de Michel Foucault. 3ª ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2008.


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