terça-feira, 11 de julho de 2017

Ivan Junqueira: sobre três livros de Merquior

O jornalista, crítico literário, poeta e tradutor carioca Ivan Junqueira, falecido em 2014 aos quase 80 anos de idade, considerava José Guilherme Merquior um dos maiores analistas de literatura no Brasil. Sua apreciação altamente positiva sobre a obra merquioriana está registrada em, pelo menos, três prefácios: à segunda edição de Razão do poema (1996) e de A astúcia da mímese (1997) e à terceira edição de De Anchieta a Euclides (1996), todas pela editora Topbooks. O material foi coligido em O fio de Dédalo (1998), reunião de ensaios do célebre tradutor de Baudelaire e T. S. Eliot, sob o título “A astúcia de Merquior”, que consta na sessão “Do ensaísmo e da crítica”.

A sequência principia com o prefácio a De Anchieta a Euclides (primeiramente publicado em 1977). Para Ivan Junqueira, essa “breve [e parcial] história da literatura brasileira” contribui especialmente pelo fato de que, nela,

Merquior, mais do que qualquer outro historiador de nossas letras, faz com que a literatura brasileira dialogue não apenas com as literaturas de outras línguas, mas também com o substrato das ideias que as informam e iluminam ao longo das etapas de sua evolução estética e doutrinária. (1998, p.214)

Com isso, o autor falecido em 1991 teria atendido plenamente ao preceito do “senso da forma” que ele mesmo estabelece em “Ao leitor”, texto introdutório do livro. Mas a obediência merquioriana aos outros dois preceitos, o da “seletividade” e da “acessibilidade”, também recebe aplauso de Ivan Junqueira. Pois este, frente à tentação de abordar o maior número possível de escritores brasileiros do período entre o início de nossa colonização e o início do século XX, assim avalia o reduzido grupo que encontramos em De Anchieta a Euclides: “E para que mais, quando se sabe que, até o fim dos Oitocentos, nossa literatura está vincada de mediocridade ou de embriões que, na imensa maioria das vezes, não chegam a vingar?” (1998, p.215)

O também imortal da ABL, antigo ocupante da cadeira 37, chega a comparar a linguagem de Merquior, empregada numa obra, para todos os efeitos, didática, com a de outros historiadores da literatura, supostamente menos acessíveis ao grande público. A esse propósito, evoca os nomes de Sílvio Romero e José Veríssimo. Não me parece, verdade seja dita, um bom parâmetro. Trata-se de dois críticos do século XIX, cuja concepção de crítica e de escrita não permite a devida comparação. Ivan Junqueira convence mais no cotejo entre Merquior e – aí sim – comentaristas contemporâneos ou mais próximos no tempo do autor de O véu e a máscara, dentre os quais cita Afrânio Coutinho, Astrojildo Pereira, Dirce Cortes Riedel. Pelo menos no tocante a Machado de Assis,

[...] Merquior os supera a todos. Supera-os, de início, quando observa que “a grandeza de Machado de Assis foi ter posto os instrumentos forjados no primeiro Oitocentos [...] a serviço do aprofundamento filosófico de nossa visão poética, em sintonia com a vocação mais íntima de toda a literatura do Ocidente”. E excede-os, ao fim e ao cabo, quando decifra o enigma talvez mais fundo do gênio machadiano: “Deste modo, Machado de Assis, que desprezou até o fim a literatura localista e folclórica, que universalizou mais que ninguém a nossa arte literária, permaneceu fiel a uma componente medular da alma brasileira”. (1998, p.217-218)

Sobre o livro de estreia de Merquior, Razão do poema (1965), conquanto passados mais de 30 anos até a reedição pela Topbooks, o resenhista verifica no volume “uma surpreendente aura de louçania exegética, de atualidade crítico-literária e de coerência estético-doutrinária”. (1998, p.218) Também sublinha os “estreitos vínculos com o pensamento marxista” (1998, p.219) de um jovem autor que, duas décadas depois, publicaria O marxismo ocidental, deste autodecretando-se figadal adversário. Considerado Razão do poema “um dos mais altos momentos a que chegou a crítica literária entre nós”, (1998, p.221) o livro ainda exemplificaria um ensaísmo marcado por “invejável robustez literária, essa mesma robustez que vimos no passado em Álvaro Lins, Otto Maria Carpeaux, Augusto Meyer ou Sérgio Buarque de Holanda, e que hoje vemos em Wilson Martins, Benedito Nunes, José Paulo Paes, Davi Arrigucci e nesse jovem crítico Antônio Carlos Secchin”. (1998, p.220-221)

É curiosa a menção a Wilson Martins em torno da linguagem merquioriana. Isso porque, no segundo volume de A crítica literária no Brasil, Wilson Martins lançou farpinhas como esta, justamente alvejando Razão do poema: “Escrevendo melhor ou com mais clareza do que José Guilherme Merquior [...]” (1983, p.713) Adelante:   

Por fim, acerca do livro que inspirou o título a essa série de resenhas, Junqueira observa que A astúcia da mímese (1972) esclarece a contento a reflexão em torno da mímese na contemporaneidade (opinião, diga-se de passagem, não compartilhada por Luiz Costa Lima, o teórico brasileiro que mais tem se debruçado sobre o assunto). Também elogia a análise de poemas dos diversos autores, estrangeiros (como Rainer Maria Rilke) e nacionais, especialmente o mais longo ensaio sobre João Cabral de Melo Neto, intitulado “Nuvem civil sonhada”. Todavia, Ivan Junqueira não cala uma ressalva contundente:

A astúcia de Merquior só tropeça quando, no final do volume, de volta a mobilizar todo o seu opulento aparato para avalizar a qualidade dos versos de Capinan e de Francisco Alvim. Concordamos com Merquior quando diz que ambos fogem “a essa discurseira, a esse lamentável alto-falante de coisas óbvias, de clichês demagógicos e de platitudes esquerdeiras” que deitaram a perder considerável parte da messe de nossa poesia de participação social. Mas o exemplário que nos oferece o autor no afã de atestar que Capinan e Alvim se alçaram um pouco além dessa aluvião palavrosa não passa, na maioria das vezes, de um acervo de banalidades, de uma poesia que, transcorrida apenas uma década, envelheceu de forma irremediável. (1998, p.226)

Vinte anos depois de publicado O fio de Dédalo, quem estaria com a razão: Ivan Junqueira ou José Guilherme Merquior? Fica a pergunta.

Referências bibliográficas

JUNQUEIRA, Ivan. “A astúcia de Merquior” in O fio de Dédalo: ensaios. Rio de Janeiro; São Paulo: Record, 1998. pp.214-226.


MARTINS, Wilson. A crítica literária no Brasil: 1940-1981. 2ª ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1983. 2º vol.

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