sexta-feira, 15 de maio de 2015

Um intelectual nos tempos da ditadura

A trajetória intelectual e profissional de José Guilherme Merquior ficou marcada por uma daquelas coincidências com que a história, às vezes, parece brincar de romancista. E o tema da interface entre o contexto do regime militar brasileiro e o cenário literário, cultural da época promove oportunidade de se repensar as possibilidades do pensamento criativo e também crítico, em condições especiais de adversidade política. Nesse sentido, é ilustrativo o caso de Merquior, autor que, bastante jovem, a convite de Manuel Bandeira, colaborou na seleção de poemas para a antologia Poesia do Brasil, publicada em 1963, ano em que também se formou no Instituto Rio Branco, para seguir a carreira de diplomata até o fim da vida. Na verdade, sua morte foi menos conclusão do que brusca interrupção. Precoce, pois, para começar, tendo escrito ensaios veiculados no Suplemento Dominical do Jornal do Brasil já em fins da década de 1950, quando contava cerca de 18 anos, e precoce para encerrar sua brilhante existência de pensador dos mais eruditos e produtivos que o País conheceu, Merquior faleceu aos 50 anos incompletos, em janeiro de 1991.

Estabelecidas essas duas datas, 1963, marco do reconhecimento público de sua competência de crítico literário e do princípio de suas atividades como funcionário do Itamaraty, e 1991, término de uma vida intelectualmente operosa, dedicada a diversas áreas das ciências humanas, é que podemos melhor observar a coincidência romanesca referida acima. Afinal, a instabilidade política já assolava o Brasil em 1963, assombrado pelas tensões e conflitos entre a postura ideológica e as atitudes do então presidente da república João Goulart e os interesses de poder dos militares e de parcela significativa da sociedade civil, em convergência ainda com a política externa norte-americana relativa à América Latina. Era o ambiente que preparava o Golpe para o ano seguinte. Quanto a 1991, em especial o mês de janeiro, nesse momento o governo do primeiro presidente eleito pelo voto direto depois do período 1964-1985, Fernando Collor de Mello, punha em prática seu segundo plano – o Collor II –, em mais uma tentativa, que logo se revelaria mal-sucedida, de controlar a inflação galopante que conturbava tradicionalmente a economia brasileira.

Ora, sabe-se que José Guilherme Merquior, na época notório entusiasta do social liberalismo, redigiu significativa parte do programa de gestão presidencial para o político alagoano, assim como foi ghostwriter de textos que Collor publicaria em seu próprio nome. De qualquer forma, o fato que queremos destacar é que a imagem do sucessor de José Sarney, fosse quem fosse, lidaria com as esperanças de um novo Brasil, democrático sobretudo, avesso às truculências e arbitrariedades ditatoriais de um passado recente, em conformidade mesmo com a Constituição Federal promulgada em 1988.

Todavia, não tencionamos aqui concluir mais do que o razoável e o pertinente dessas considerações de ordem tão marcadamente cronológica e biográfica. A pergunta que pretendemos não responder, mas discutir neste artigo é: que intelectual foi José Guilherme Merquior, quem pensou e produziu a maior parte de sua obra durante o regime militar? Ou ainda: seria legítimo considerá-lo um autêntico intelectual, tendo sido funcionário desse governo, se sujeitado à censura do Ministério do Exterior, segundo a praxe diplomática, antes de publicar qualquer texto?

Para dar início a nossa discussão, propomos teimosamente retornar àquelas duas datas: 1963 e 1991. Em sua “Nota antipática” à antologia Poesia do Brasil, José Guilherme Merquior assumia, aos 22 anos de idade, um tom de escrita que o caracterizaria para sempre – o tom da polêmica aliado a uma petulância estilística destemida que o jovem autor, decerto orgulhoso e envaidecido pelo convite de um poeta do quilate de Manuel Bandeira, dizia ter aprendido da “atitude artística e crítica de 22”. (MERQUIOR, 1963, p.8) A referência, está claro, é ao modernismo da Semana de Arte Moderna, cuja geração, com irreverência iconoclasta, atacara todo o tradicionalismo de formas e de ideias de uma literatura ainda aferrada a modelos estéticos oitocentistas.

No tocante à segunda data, cumpre sermos mais exato. Na verdade, não propriamente em 1991, mas em novembro do ano anterior, ciente do câncer que lhe não permitiria ver publicado seu livro Liberalism: old and new, Merquior redige seu último texto, uma homenagem ao jurista e filósofo Miguel Reale. Em discordância de certo otimismo, expresso na obra do homenageado, em relação à complementaridade e solidariedade entre si dos valores na modernidade, José Guilherme Merquior assim argumenta:

Como a sociedade, a cultura vive em conflito – até certo ponto, do conflito [...]. O sonho neocatólico de uma re-harmonização dos valores não se afigura capaz de enraizamento na cultura moderna. O pluralismo, que Reale sublinha, não leva ao consenso; a dissonância é inerente à sociedade aberta e, tudo indica, à alma contemporânea. (MERQUIOR, 1992, p.35-36)[1]

Dessas duas citações podemos inferir como Merquior compreendia sua própria condição de polemista. Esse termo, de fato, identifica muito bem os aparelhos discursivos de pensamento do nosso autor, que, em princípios da década de 1960, via a si mesmo como herdeiro da postura crítica, inconformista da geração de 22.

Aliás, cabe aqui citar também passagem do ensaio “A poesia modernista”, originalmente publicado em 1962 e depois coligido em Razão do poema, o primeiro livro de Merquior, publicado em 1965. Nesse texto, expressa-se “a certeza de que o espírito de 22 se conserva absolutamente vivo, e ainda mais vivo, porque depois dessa data e da fundação da grande obra dos modernistas, nada mais alterou verticalmente a poesia brasileira”. (MERQUIOR, 2013, p.40) Mas não confundamos alhos com bugalhos. O que teria a ver a atmosfera da poesia naquele período com o propósito de uma obra em prosa de caráter analítico, reflexivo, crítico e filosófico que é a obra merquioriana? Essa aproximação não quer insinuar mais do que a sintonia que um pensador e crítico literário afirmou haver entre si e uma índole literária que sempre defenderia dever orientar os presentes e futuros poetas brasileiros. Pois, para Merquior, um dos feitos realizados pelo modernismo de 22 teria sido produzir “uma literatura telúrica de primeira grandeza”, na conquista definitiva da nacionalidade literária, mas que também “respondeu à exigência de universalizar-se, guardando no seu vigoroso senso de lugar uma dimensão profundamente humana”. (2013, p.41) Era o que, aliás, José Guilherme Merquior, na condição de orador de sua turma que se formava no Instituto Rio Branco, postulava no discurso pronunciado em dezembro de 1963:

 
Nós nos sentimos alegres por iniciar uma carreira de perfil internacional precisamente quando o Brasil oficializa a percepção desse sentimento popular. Sentimento que faz, de nossa participação no Ocidente, que é uma aberta e dinâmica concepção de vida, e não um baluarte cegamente armado contra a convivência, medroso de infiltrações, maníaco pela autodefesa, nas vésperas de um alargamento físico-demográfico do mundo por si só tornando ridículas as pretensões ao isolamento. Nós não receamos nenhum contágio. Suficientemente convictos de nossa força, destinamo-nos a cumprir uma vocação universalista. Nosso amor à nacionalidade é, no fundo, a melhor forma de sermos humanos. (MERQUIOR, 1993, p.45)

O que se mostrava estar em jogo para Merquior, portanto, era a inserção sem dissolução da cultura brasileira numa amplitude ocidental ou universalista. Não resta dúvida de que o autor de As ideias e as formas procurou orientar-se por esse horizonte de intervenção intelectual que não se limita à pátria, para o que, naturalmente, a diplomacia contribuiu enormemente. Alguns títulos significativos de sua obra atestam-no. L’esthétique de Lévi-Strauss (1975), The veil and the mask (1979), Rousseau and Weber (1980), Foucault (1985), The Western Marxism (1986) e From Prague to Paris (1986) foram livros publicados lá fora, originalmente escritos em língua estrangeira. Todavia, os temas discutidos nesse conjunto – estruturalismo, pós-estruturalismo, marxismo, sociologia – eram (se ainda não são todos) de interesse não apenas estrangeiro, mas também brasileiro – afinal, aqueles livros não tardaram a ser traduzidos e aqui publicados.

Do que até aqui expusemos acreditamos poder extrair uma primeira conclusão a respeito de José Guilherme Merquior no contexto do regime militar: suas atividades de pensador, de intelectual requerem contextualização mais ampla do que a das fronteiras nacionais, para não corrermos o risco de incorrer em mais danosa simplificação. Essa contextualização mais ampla, a qual ainda assim permite articulação com o cenário ditatorial do País, parece encontrar um bom começo na passagem do texto dedicado a Miguel Reale, “a dissonância é inerente à sociedade aberta e, tudo indica, à alma contemporânea”.

Fixemo-nos por ora nestas três palavras: dissonância e sociedade aberta. Elas poderiam servir de palavras-chave de nossa discussão em torno de um polemista que pertenceu a um país cuja sociedade estava longe de ser “aberta”. Com efeito, vindo a participar de notórias polêmicas, José Guilherme Merquior reconhecia a importância, mas também as dificuldades desse tipo de debate no contexto brasileiro. Em entrevista à revista Veja, na época do lançamento de As ideias e as formas (1981), lamentava: “Uma das características defeituosas do nosso debate intelectual [...] é que ele é muito subdesenvolvido [sic] e raramente ocorre [...]”, porque “É típica a maneira como se reage no país à polêmica. Quando um intelectual no Brasil se sente incomodado por um crítico, ele não contra-ataca as ideias do crítico, ataca o próprio crítico.” (MERQUIOR, disponível em <<http://veja.abril.com.br/especiais/35_anos/p_014.html>>)

No próprio As ideias e as formas, (e importa frisar que se trata de livro publicado em período da ditadura, conquanto em momento francamente mais propenso à democratização), Merquior reivindicava, em nome do que denominava de “crítica liberal”, uma “independência do espírito” que via sob ameaça de uma suposta intelligentsia de esquerda, acostumada a refutar ideias adversárias, de olho na pessoa que as defendia:

Desqualificado o crítico, não vale a pena discutir o que ele diz – e os sectários podem continuar refestelados nas suas dogmáticas certezas de preguiçosos mentais e palmatórias do mundo. “Fulano disse x, beltrana escreve y? Esqueça x e y: fulano não passa de um burguês conformista ou oportunista; não vê que ele trabalha para o governo? – e fulana é condicionada, não é à toa que seu marido é empresário”, etc... (1981, p.30)

O problema, portanto, não dizia respeito apenas à censura do governo militar: muitos que se opunham ao regime e a sua ideologia capitalista acabavam por censurar vozes outras, comprometendo a preparação de um ambiente democrático que se prometia realizar nos últimos anos da ditadura. Naturalmente, a passagem acima citada refere-se a experiências do próprio Merquior, ainda hoje vítima de equívocas classificações, no mais das vezes rótulos que tresandam a ressentimentos esquerdoloides e/ou a ignorância relativa à obra do autor aqui em discussão.

Dessa polêmica antipolêmica, na medida em que interdita a comunicação de ideias, priorizando o confronto pessoal, Merquior procurou esquivar-se ao máximo, em obediência a preceito que lapidarmente ele mesmo defenderia no seu discurso de posse na Academia Brasileira de Letras, proferido a 11 de março de 1983: “[...] o diálogo, mesmo na eventual divergência, é a via régia do conhecer e da paixão que me anima: a paixão de compreender. O prêmio da vida acadêmica não é a discordância sem discórdia?” (disponível em <<http://www.academia.org.br/abl/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=13257&sid=330>>)

Compreensivelmente, amigos procuraram, em bibliografia em boa medida motivada pela comoção frente à morte precoce de Merquior, isentá-lo do epíteto – alegado redutor – de polemista. É o caso de José Mario Pereira, autor do incontornável escorço biográfico “O fenômeno Merquior”. Todavia, a frequência significativa com que o próprio homenageado se identificava ou insinuava ser um “guerrilheiro das ideias” (expressão que tomamos emprestada de João Cezar de Castro Rocha; cf. 2011, p.161) parece-nos contrariar a compreensão de Mario Pereira.

A questão se refere primeiramente a uma visão redutora dos potenciais da polêmica bem constituída, ou da guerrilha bem travada, conforme esclarece Castro Rocha, em Crítica literária: em busca do tempo perdido?. Nesse livro, o autor questiona o entendimento de que a polêmica consistiria necessariamente em manifestação nociva do autoritarismo narcisista arraigado na sociedade brasileira. Com o objetivo de reabilitá-la, considerando-a indicativo de vitalidade intelectual e instrumento poderoso de discussão de ideias, João Cezar de Castro Rocha receita a polêmica como um dos possíveis remédios para o marasmo intelectual destes primeiros anos do século XXI.

Ao contrário de José Mario Pereira, Sérgio Paulo Rouanet e Miguel Reale não pisaram ovos perante o qualificativo de polemista atribuível ao amigo. Em Figuras da inteligência brasileira, Reale fere a questão de modo exemplar: “Em poucos escritores senti tão intensa e viva a angústia de comunicação e participação, o que, de um lado, explica a natureza dialógica de seus estudos, em permanente cotejo com posições afins ou contrárias, e, de outro, a preocupação de nunca deixar críticas sem resposta [...].” (REALE, 1994, p.165) Com palavras mais descontraídas, por ocasião da solenidade comemorativa dos 10 anos de falecimento de Merquior, Rouanet referiu-se, mais de uma vez, ao gosto pela polêmica que marcou profundamente o homenageado. A partir de lembrança de antigo debate entre os dois em torno do marxismo, Rouanet, confessando-se então vencido e convencido pela opinião do amigo, afirmou: “Mas José Guilherme era um polemista tão incorrigível, que talvez, só pra continuar a polêmica, ele mudasse de posição [...]”. (ROUANET, 2011, p.250)

Obviamente, há algo aí que suplanta o meramente anedótico. É frequente mencionar-se os nomes de Marilena Chauí, de Eduardo Mascarenhas, de Hélio Pellegrino, quando se pretende noticiar as polêmicas nas quais Merquior se envolveu. Houve nesses episódios, porém, indisposição pessoal, e não puramente confronto de ideias. Sendo assim, a nosso ver, seria esclarecedor acrescer os nomes de Sérgio Paulo Rouanet, Carlos Nelson Coutinho, Leandro Konder, amigos com quem Merquior chegou a travar belas polêmicas, acaloradas, mas sem deixar de ser calorosas. Ou seja, a concepção merquioriana de polêmica realizou-se na prática, sim, como exercício democrático de manifestação e defesa de ideias, e não mero sintoma de autoritarismo ideológico.

Como primeira etapa de nossa discussão, fiquemos por aqui, solicitando que o leitor retenha a consciência de José Guilherme Merquior da dissonância como característica da “alma contemporânea”, para a qual seria imprescindível “uma sociedade aberta”, e como um dos dispositivos discursivos que manifestam essa dissonância a polêmica. Em suma, para nossos propósitos, a disposição à polêmica poderá ser a chave de compreensão de Merquior como intelectual nos tempos da ditadura.

Nesta segunda etapa de nossa investida, passaremos a tentar situar a obra de Merquior, que, para efeitos deste artigo, necessariamente ultrapassa o apenas escrito por ele, com reflexões em torno do papel e do lugar do intelectual na sociedade novecentista. Para esse fim, elegemos, dentre uma bibliografia numerosa, três livros de autores distintos: as Representações do intelectual, transcrição e reunião das conferências Reith que Edward Said pronunciou, a convite da rede britânica BBC, em 1993; Os últimos intelectuais, de Russell Jacoby, originalmente publicado, em inglês, em 1987; e O intelectual e o poder, de Eduardo Portella, volume de 1983. Por que tais títulos? O recorte mínimo e a seleção pareceram-nos pertinentes, na medida em que o livro de Said poderia proporcionar uma atualização de cunho mais universal para a questão do intelectual, sem demasiada distância cronológica da época em foco; o livro de Jacoby contribuiria especialmente para a contextualização no que se refere ao fenômeno da expansão universitária e profissionalização acadêmica, entre as décadas de 1940 e 70; e o de Portella funcionaria como termo comparativo nacional, ideológico, afetivamente mais próximo de Merquior, dado que eram grandes amigos.

Ao introduzir as reflexões que desenvolveu no volume, Edward Said pontua características e tarefas que o intelectual que faça jus a este título toma para si como norteadores de atuação. “Uma das tarefas do intelectual reside no esforço em derrubar os estereótipos e as categorias redutoras que tanto limitam o pensamento humano e a comunicação” (2005, p.10), afirma o autor, que, mais adiante, acrescenta: “[...] minha tentativa nessas conferências foi, antes de mais nada, falar de intelectuais precisamente como aquelas figuras cujo desempenho público não pode ser previsto nem forçado a enquadrar-se num slogan, numa linha partidária ortodoxa ou num dogma rígido.” (2005, p.12)

Como situar José Guilherme Merquior perante tais caracterizações iniciais? O que anteriormente observamos deve ser retomado. Julgamos correto afirmar que o estereótipo consiste em uma das expressões do senso comum, obviamente, do senso comum de uma determinada comunidade. O pensamento merquioriano, como vimos, instrumentalizou sistematicamente a polêmica como dispositivo dialógico, no fito de contribuir para a circulação das ideias, mas também de testar a pertinência das ideias. Esse esforço, havemos de concordar, atesta a procura de se escapar justamente do que se configurou como consenso. Pois a polêmica, nos moldes gerais em que Merquior a travou, agride “os estereótipos e as categorias redutoras”.

Em junho de 2013, tivemos a oportunidade de comunicar, em simpósio dedicado ao tema da “Literatura e dissonância”, do XXIII Congresso Internacional da ABRALIC, realizado em Campina Grande-PB, o texto “Vai, Merquior! desafinar o coro dos descontentes...”. Em síntese, voltado principalmente para a última década de sua produção, observamos, nessa comunicação, que o autor de A natureza do processo se empenhou em martelar ídolos de universidades brasileiras e estrangeiras, como o marxismo, a psicanálise, a arte de vanguarda, os quais, por aquela altura, já se institucionalizaram numa espécie de imperativo categórico que impeliria professores e estudantes a integrarem o coro dos descontentes. José Guilherme Merquior, portanto, contra a doxa cultural acadêmica, contra o movimento contracultural esvaziado em moda, era uma voz dissonante nesse mesmo meio, o universitário, de que não deixou de fazer parte. Afinal, assevera Said: “O que o intelectual menos deveria fazer é atuar para que seu público se sinta bem: o importante é causar embaraço, ser do contra e até mesmo desagradável.” (2005, p.2

Por outro lado, não teria Merquior se enquadrado “num slogan, numa linha partidária ortodoxa ou num dogma rígido”, ao manifestar-se dentro dos propósitos referidos no parágrafo anterior? No decorrer das três décadas nas quais o autor carioca exerceu publicamente suas atividades intelectuais, não verificamos que ele tenha se aferrado a um slogan específico, e, de fato, é impossível reduzir o pensamento crítico merquioriano a uma palavra ou a uma frase de ordem. Quanto aos vínculos com a campanha e a gestão presidencial de Fernando Collor de Mello, estamos de acordo com a hipótese de Luiz Costa Lima, para quem “o posterior envolvimento [de Merquior] com governos que caminhavam do turvo ao torpe [não] tivera [propriamente] relação com suas opções intelectuais anteriores [, mas], conforme me inclino a crer, a silenciavam”. (2002, p.399) Todavia, ao aceitarmos essa hipótese como fato, a condição de Merquior como intelectual, por conseguinte, fica comprometida, segundo os parâmetros de Edward Said, em outro aspecto

Recordemos uma lição de Roland Barthes. Em ensaio clássico de O rumor da língua, o crítico francês ensinava que “desde que um fato é contado, para fins intransitivos, e não para agir diretamente sobre o real, isto é, finalmente, fora de qualquer função que não seja o exercício do símbolo, produz-se esse desligamento, a voz perde sua origem, o autor entra na sua própria morte, a escritura começa”. (2004, p.58) Said, consciente das diferenças entre o escritor com objetivos literários e o escritor com objetivos intelectuais, por sua vez, alertou: “A questão central para mim, penso, é o fato de o intelectual ser um indivíduo dotado de uma vocação para representar, dar corpo e articular uma mensagem, um ponto de vista, uma atitude, filosofia ou opinião para (e também por) um público [...].” (2005, p.25)

Sendo assim, a discordância da prática política com o pensamento crítico, nos seus últimos anos de vida, parece evidenciar a parcialidade representativa de José Guilherme Merquior como intelectual, dentro dos parâmetros estabelecidos nas conferências de Said, uma vez que, para este, o intelectual é “alguém que não pode ser facilmente cooptado por governos ou corporações”. (2005, p.26) Aliás, vale aqui reiterar as censuras implicadas no exercício do cargo de diplomata, tendo sido Merquior, efetivamente, vítima de sua própria sujeição a esse cerceamento da palavra.

A questão importa nos termos de nossa discussão, pois o autor palestino compreende o intelectual “como um exilado e marginal, como amador e autor de uma linguagem que tenta falar a verdade ao poder”. (2005, p.15) Trata-se, está claro, de postura o mais autônoma, mais independente possível, no propósito de mais plena defesa de valores universais – não necessariamente circunscritos a uma instituição, a uma nação, a um governo –. Quanto a isso, ainda adverte Said que “os governos continuam a oprimir abertamente as pessoas, graves erros judiciários ainda acontecem, a cooptação e inclusão de intelectuais pelo poder continuam a calar a sua voz, e o desvio dos intelectuais da sua vocação é ainda muitas vezes uma realidade”. (2005, p.31-32)

Quereria isso implicar que José Guilherme Merquior se enquadraria na categoria dos intelectuais conformados, dos quais Said diferencia dos inconformados nos termos abaixo transcritos?

De um lado, há os que pertencem plenamente à sociedade tal como ela é, que crescem nela sem um sentimento esmagador de discordância ou incongruência e que podem ser chamados de consonantes: os que sempre dizem “sim”; e, de outro, os dissonantes, indivíduos em conflito com sua sociedade e, em consequência, inconformados e exilados no que se refere aos privilégios, ao poder e às honrarias. (2005, p.60)

 Nossa resposta, se impostas as opções do sim ou do não, prefere o silêncio. Pois Merquior, na condição de funcionário público de alto nível socioeconômico, não se exilou desse mundo de privilégios, de poder oficial, de honrarias, tampouco a ele se opôs explícita e frontalmente. Todavia, o que pensar diante da consciência merquioriana da dissonância ou discordância e a prática discursiva desta na polêmica? Donde cabe a contrapergunta: o que Said quer dizer com “os que pertencem plenamente à sociedade”? A uma sociedade de representação política? De oposição ou de situação? A uma sociedade acadêmica? Ao povo? A fragmentação social moderna e contemporânea dificulta bastante o estabelecimento de uma referência dessa discordância, desse exílio ideológico ao qual Edward Said se refere.

Ademais, o entusiasmo liberal pronunciado na década de 80 por Merquior não nos parece conotar um sim incondicional à sociedade brasileira, em suas características de disparidade econômica, em seu centralismo governamental, tampouco a diversas manifestações culturais em voga na época. O que talvez possamos concluir, por ora, é que o lá ou cá conceitual de Said recai numa simplificação, numa desatenção à complexidade de uma cultura que “vive em conflito de valores”.

Passemos para o próximo título – Os últimos intelectuais. Nesse livro, Russell Jacoby discute o que diagnostica como a extinção dos intelectuais norte-americanos ou, talvez mais propriamente, o desconhecimento por parte do público em geral dos intelectuais que se esperaria constituírem a geração de 1960. Ao passo que nomes de gerações anteriores seriam facilmente lembrados, Jacoby observa que, comparativamente, muito poucos intelectuais nascidos na década de 1940 e a partir desse decênio, nos EUA, haviam conseguido estabelecer efetivo diálogo e impacto na sociedade, fato que daria a sensação de que: “Está faltando uma geração” (1990, p.33). Para o autor, a lacuna se explicaria como decorrência da expansão do ensino superior, nos anos 60 e 70 do século passado, o que teria gerado o fenômeno da profissionalização do intelectual. Desse modo, nas palavras de Jacoby:

O peso total do academicismo atingiu a geração nascida após 1940; eles cresceram em um mundo em que eram raros os intelectuais independentes da universidade. Assim como as gerações anteriores de intelectuais quase nunca consideravam as carreiras universitárias, o inverso se tornou realidade: esta nova geração quase nunca considerava uma vida intelectual fora da universidade. (1990, p.30)

Conquanto trate especificamente do contexto norte-americano, Os últimos intelectuais aborda processos e problemas que também aconteciam no Brasil da mesma época. Esse livro traz informações como: “Em 1900, a universidade era estritamente um assunto da elite, atendendo a cerca de 4 por cento dos jovens de dezoito a 22 anos; no final dos anos 60, cerca de 50 por cento do grupo entre dezoito e dezenove anos estavam ingressando no sistema educional superior” (1990, p.143) e “Os estudantes de pós-graduação aumentaram de cerca de 100 mil em 1939-40 para mais de 1 milhão em 1970” (1990, p.144). Tomemos como termo comparativo brasileiro o sucedido nos cursos de Letras, um dos alvos da Reforma Universitária de 1967, tendo-se reformulado sua grade curricular na mesma década, e ainda implantado cursos de pós-graduação na área, ao fim dos anos 60 (cf. ROCHA, 2002, p.14-15). Esse processo consolidará uma notória novidade no panorama da crítica literária nacional: ao contrário das gerações anteriores do mesmo século, no mais das vezes sem formação universitária específica, e atuando como jornalistas, ao publicarem preferencialmente em rodapés, grande parte dos novos críticos vinha se profissionalizando, graduando-se em Letras. Na verdade, já antes, desde meados da década de 40, havia o prenúncio da “crescente perda de poder deste intelectual sem especialidade, deste ‘leitor-que-sabe-de-tudo’, que dominava o jornalismo literário” (SÜSSEKIND, 2002, p.18). Esse contexto se transforma definitivamente não apenas em decorrência das reformas e da expansão dos cursos de Letras, mas também da “regulamentação da profissão de jornalista, de 17 de outubro de 1969” (SÜSSEKIND, 2002, p.31).

A expansão do ensino universitário seduzia grande parte da inteligência nacional com a estabilidade financeira, modificando assim a ambientação intelectual e profissional do País. A custo, geralmente, como sublinha Jacoby para o contexto norte-americano, da maior autonomia e liberdade de pensamento. Com efeito, segundo Russell Jacoby, a profissionalização acadêmica provocava dois grandes prejuízos para o exercício autêntico da intelectualidade: 1) a restrição da autonomia do pensamento e expressão, uma vez que o professor devia conformar-se a regras institucionais, aos gêneros textuais e ao jargão que cada área estabelecia; e 2) a restrição da capacidade de intervenção social ampla, da qual haviam desfrutado os intelectuais de gerações anteriores, mais propensos à vida boêmia, por um lado, mas por outro, formuladores de um pensamento estilisticamente mais acessível ao público em geral. O que teríamos, então, poderia ser expresso na fórmula do paradoxo: a marginalização do intelectual, traduzida na vocação boêmia, associava-se à comunicação efetiva com a sociedade; e a conformação social do intelectual, condicionada pela estabilidade profissional e financeira, associa-se à dificuldade na comunicação com a sociedade, em virtude (ou vício) do recurso a uma linguagem destinada a iniciados.

Desconsiderando-se o fator da boemia, para nos atermos ao aspecto diletante da crítica literária no Brasil, tanto nos EUA quanto aqui, o confinamento da maioria dos intelectuais ao gueto acadêmico, com seu linguajar, suas intervenções realizadas em congressos e em teses dirigidos ou acessíveis a um público específico, também de acadêmicos, implicou a perda da faceta socialmente mais participativa do intelectual, de seu papel de consciência política, convertido este em papéis escritos sob o estímulo do irônico “publish or perish” (“publique ou pereça”).

Em mais de um texto, José Guilherme Merquior manifestou desagrado frente a tais condições de pensamento em tempos de massificação do ensino, fenômeno que afetava o lugar do intelectual nos EUA, mas também no Brasil e, é justo dizê-lo, em boa parte do Ocidente. Seu artigo provocativamente intitulado “O estruturalismo dos pobres”, de 1974, por exemplo, atentava para o problema “da universidade que, desejando-se socialmente antielitista, por fidelidade ao imperativo da democratização do ensino, vem destruindo, consciente ou inconscientemente, o outro elitismo da universidade tradicional – o seu legítimo aristocratismo intelectual”. (1975; 12) Ao discutir a validade de certa ideia de progresso, em A natureza do processo, livro publicado em 1982, Merquior reincide em sua percepção dos fatos:

A expansão do número de universitários não significa, automaticamente, nenhum aperfeiçoamento da instrução superior – ao contrário, em muitos países, entre os quais o nosso, veio dificultá-lo. A multiplicação de especializações com direito à ocupação exclusiva de certos empregos não é um efeito natural do progresso da divisão do trabalho, levando a maior eficiência em várias funções. Longe disso: com frequência o reino do diploma cria rigidez e ineficiência. Antigamente, por exemplo, os colunistas econômicos dos grandes jornais brasileiros eram economistas, profissionais ou amadores. Hoje, eles têm que ser obrigatoriamente formados em “comunicação” – e, em consequência, pouco entendem da matéria sobre a qual vão escrever... (1982, p.26)

 Sem dúvida, a preferência de Merquior pela dicção ensaística e polêmica derivava do desejo de desacademizar as ideias cada vez mais conformadas ou padronizadas pelas instituições universitárias. O ensaísmo, forma avessa ao rigor de gêneros como artigo, dissertação e tese, e a polêmica, propensa a desestabilizar o conforto das ideias enquadradas naquele formato, na maioria dos casos, destinadas assim ao não diálogo, constituíram o instrumento básico da militância merquioriana, que pretendia, “aquém do jargão, além do chavão”, conforme professou em A natureza do processo (1982, p.10), atingir potencialmente o maior número de leitores. Com isso, dois objetivos pareciam estar em vista. Um de cunho científico: fazer circular as ideias, sujeitando-as à discussão, às críticas alheias, desse modo consolidando-se ou reconsiderando-se as próprias opiniões; outro de cunho pedagógico: mediante a linguagem mais acessível a uma maior dimensão de público, no que colaborava o suporte do jornal, ensejar a instrução em determinados temas artísticos, filosóficos, políticos, econômicos etc.

O curioso é que José Guilherme Merquior, embora tivesse mantido postura discursiva não acadêmica nos aspectos aqui em foco, buscou uma formação acadêmica invejável, graduando-se em Direito no Brasil, doutorando-se e obtendo grau de PhD no exterior, lecionando em universidades nacionais e estrangeiras, tendo sido aluno de Lévi-Strauss... Mas, na época dos que nasceram depois de 1940 (e Merquior nasceu em 1941), em companhia de Jacoby, perguntamos nós: aonde recorrer, em busca de formação intelectual consistente, senão à universidade? De qualquer modo, o ensaísta e polemista Merquior, com persistência, fincou os pés no território da autonomia de pensamento e na idiossincrasia do estilo. Ademais, sua crítica sistemática ao esteticismo das vanguardas, ao formalismo de certa crítica literária e sua aversão ao jargão encarnado no “delírio tecnicista” (MERQUIOR, 1996, p.7) ou “terrorismo terminológico” (MERQUIOR, 1975, p.8) pode ser iluminada pelos seguintes trechos de Os últimos intelectuais, em torno do marxismo de Fredric Jameson: “O problema não é só o jargão excessivo de Jameson, mas o próprio jargão: tudo é texo e mais texto”, a ponto de, em consonância com as lições de Roland Barthes e Jacques Derrida, “abdica[r-se] da preocupação com um contexto social ou material” (JACOBY, 1990, p.185). Ou seja, a arte pela arte vanguardista, a forma pela forma do estruturalismo pareciam irmanar-se com a produção acadêmica pela produção acadêmica, ou ainda com “fetichismo da teoria” (JACOBY, 1990, p.186), sem ressoarem os três termos socialmente.

Confrontemos agora o trajeto como intelectual de José Guilherme Merquior com as reflexões a respeito do assunto expostas por Eduardo Portella, em O intelectual e o poder. Trata-se, conforme já noticiamos, de livro publicado em 1983, altura em que o regime militar brasileiro encontrava-se em período crepuscular, anunciando a abertura para a democracia e o governo civil. Integrante do gabinete civil do presidente Juscelino Kubitschek, ministro da educação no governo de Figueiredo, Portella, assim como o amigo Merquior, pôde conhecer por dentro o mecanismo do poder estatal, vivenciando conflitos entre sua assumida condição de intelectual (publicou numerosos títulos seus e alheios na área da crítica e teoria literárias, sendo editor da importante Tempo Brasileiro), e o exercício frequente de cargos políticos de grande destaque. O intelectual e o poder resulta, em boa parte, da biografia profissional do autor, mas se volta principalmente para uma universalização do que deve cumprir o intelectual, que necessariamente lida com e enfrenta o poder.

É digno de nota ainda, como consideração inicial, o fato de que autor do volume assumia ter se dado a liberdade de evitar os moldes dos gêneros acadêmicos e as intenções da erudição (cf. 1983, p.11), sendo tais aspectos formais, diante do que anteriormente discutimos, a partir do livro de Russell Jacoby, muito significativos da postura intelectual de Eduardo Portella, para quem:  

O erudito instalado na instituição acadêmica parece haver optado por outra forma de isolamento: ele se isola dentro de um inacessível jargão, nas paredes do qual se encontra uma enorme placa proibindo a entrada até aos menos comuns dos mortais. Esses iniciados nos segredos de todos os ocultismos, em vez de trabalhar com a linguagem, operam com sinais cifrados. (1983, p.82)

Infere-se, desde já, que Portella compreende o intelectual como função avessa ao disseminado solipsismo acadêmico hegemônico, donde o autor partir de hipóteses conceituais diversas, nem todas elogiosas:

O intelectual constitui, nos quadros do capitalismo de organização, um núcleo infatigável de resistência política? Uma peça de museu reverenciada, um anacronismo descartável, ou um agente de renovação social? É provável que cada um desses enunciados contenha, paradoxalmente, substancial parcela de verdade. (1983, p.18)

Assim como E. Said e R. Jacoby, E. Portella distingue mais de uma postura do intelectual, balizando comportamentos e ideário compatíveis com que seria o ideal ou o mais autêntico tipo. Nesse sentido, o autor indica um percurso histórico que partiria do ambiente de certezas, onde se situaria a “figura do letrado, particularmente confessional, que estende a sua jurisdição desde o beletrista até o médico humanista”, passaria pelo “espectro do especialista, o técnico por antecipação, que invade as profissões liberais e ‘funcionaliza’ os saberes universais”, que, por sua vez, cede lugar ao “tecnocrata, a corruptela e até o kitsch do técnico, aquele que se dedica a restaurar a certeza na era da incerteza – o portador de um saber cada vez mais dominador e excludente.” (1983, p.19)

Na época em que Portella enuncia, atuariam, pois, os dois grandes tipos: o eticamente deturpado e o ideal do intelectual. A diferença determinante se verificaria no fato de que “O intelectual não pertence ao poder. O tecnocrata sim: subservientemente.” (1983, p.53) A esse propósito, em outra passagem do livro de Portella, lemos a seguinte contestação: “Costuma-se afirmar que todo governo ‘tem’ os seus intelectuais; como se essa capciosa relação de posse não implicasse na violação do próprio caráter intelectual – uma vez que, o intelectual tido, de há muito já deixou de ser.” (1983, p.26)

Em contrapartida, Portella evita santificar o que considera apenas um tipo ideal, na medida em que este deverá consistir em “um sujeito histórico concreto” (1983, p.21), e não “um feiticeiro modernizado, o ambicioso super-herói, talvez o semideus persistente da galáxia da Ilustração.” (1983, p.19) Por isso mesmo, se revelaria tão incomum a representação mais autêntica do intelectual e tão mais comum a do intelectual corrompido, que, “à sua maneira, reproduz o poder ao qual se pretende opor: o intelectual que exclui; e já não o que se acha excluído.” (1983, p.78)

Se a conspurcação do intelectual, para Russell Jacoby, decorre, em maior medida, de sua profissionalização acadêmica, para Eduardo Portella, o fator maligno é não mais abstrato, porém mais tentacular: o poder – o poder, sobretudo, que o Estado pode deter, principalmente nos moldes autoritários. Sendo assim, reflete o autor:

A crise é, mais do que nunca, de legitimidade; de rendimento social dos esforços racionalizadores. Não advém da inviabilidade de uma nação espiritualmente combalida. Mas do muito Estado na nação, e da pouca nação no Estado. O que já se chamou, com louvável precisão, de ‘golpe de Estado tecnocrático’, é ainda – permanente e progressivo. A decisão concentracionária alarga o raio de alcance do autoritarismo. Regulando preços, salários, parte substancial dos instrumentos de formação de opinião, subsidiando, direta ou indiretamente, ponderável parcela da produção cultural, o Estado condena o trabalho intelectual a uma dependência particularmente brutal. (1983, p.47)

Dentro dos termos de discussão de Portella, como situarmos a atuação intelectual de José Guilherme Merquior? Para começo de conversa, o autor de Os intelectuais e o poder sugere ser ele mesmo espécime do que defende ser o tipo ideal de intelectual. De fato, em passagens desse livro, há o relato autobiográfico de como Portella reagiu, no exercício de cargos públicos, a coações da hierarquia, que comprometeriam, caso a elas se sujeitasse, seu compromisso ético de intelectual. Portanto, parece se estabelecer aqui importante diferença entre o ideal de Said e o ideal de Portella; em outras palavras, o intelectual portelliano, ao contrário do saidiano, consegue manter-se, não sem enfrentar obstáculos, é claro, mas principalmente porque os supera, um autêntico intelectual, mesmo que exerça cargos políticos de elevada importância.

No caso de Merquior, não dispondo nós de informações mais detalhadas senão as esparsas em depoimentos de amigos e colegas, não é fácil determinar exatamente seu enfrentamento do poder. Sua boa relação com José Sarney, com Roberto Marinho, com Fernando Collor de Mello, significaria subserviência ao poder? Não nos sentimos, mais uma vez, seguro para dar nossa resposta. Se, em vez de “subserviência ao poder”, disséssemos “conformismo”, tendemos a responder que Merquior não poderia ser associado a essa postura tecnocrática. Pois, para ainda nos apoiarmos no livro de Portella, identificamos Mequior muito mais como um “Conviva ou criatura da dúvida, muito mais do que produtor ou consumidor de ideologias” (1983, p.58), que não se teria permitido atuar intelectualmente nas condições abaixo:


Fechado no seu pequeno mundo, nostálgico, ressentido, o intelectual se assemelha a um guru subempregado; ao qual se houvesse retirado a audiência. Então ele se tranca ainda mais, e todo interlocutor independente não passa de um disfarçado agente da barbárie. A competência autocrítica, inerente à sua condição, deixa até de ser uma hipótese remota. A fobia da discrepância é a doença que se alastra. E nessa hora, ele é todo um guerreiro da palavra. O seu código é um arsenal; a sua fala, dispara. Sanguíneos e apopléticos, reproduzem a passionalidade mórbida. Jamais a paixão criadora. Os apenas passionais carecem de genuína paixão. Já não falo sequer de compaixão. Esses enfurecidos, ou coléricos, se abandonaram à raiva porque romperam todos os elos com o próximo. (1983, p.79)

Merquior teria sido, na condição de polemista, sim um guerrilheiro das ideias, mas sua obra não manifesta “passionalidade mórbida”, mas “paixão criadora”. A ensaística merquioriana não objetivava a destruição, mas a edificação do pensamento, de forma comparável à da sua tão amada geração modernista de 22.

De tudo que expusemos, o que concluímos? Que espécie de intelectual foi José Guilherme Merquior, nos tempos de regime militar brasileiro? Está claro que nosso parâmetro comparativo não poderia ser o do engajamento da esquerda na época, que não se limitou a contestar verbalmente a ditadura capitalista, mas também se empenhou em combatê-la fisicamente, sujeitando-se à clandestinidade, a perseguições, à tortura, ao assassinato etc, até ao ponto da impossibilidade de atuação dos grupos mais conhecidos, como VPR, MR-8, COLINA e ALN. Definitivamente, este não consistiu no modelo de intelectual para Merquior, funcionário operoso e exemplar a serviço dos interesses da diplomacia de Brasília. Com isso, porém, não pretendemos insinuar a inferioridade ética do papel de intelectual exercido pelo nosso autor, tampouco ratificar os célebres rótulos de “intelectual dos militares”, de “reaça”, “pensador de direita”, entre outros. Afinal de contas, significativa parcela dos militantes contrários ao governo de entre 1964 e 1985 tomava como ideal político de oposição os regimes soviético e cubano; como todos sabemos, igualmente perseguidores, torturadores, silenciadores da liberdade de expressão etc.

Edward Said, a propósito, no livro discutido neste artigo, caracteriza como tolice, para um autêntico intelectual, escolher, por imposição da realidade, entre duas opções políticas ruins. Por que não aspirar ao melhor, ainda que se trate de atitude utópica? O fato de Merquior ter sido funcionário público durante a ditadura não implica adesão ideológica, nem colaboracionismo. Sua obra publicada na década de 1970 aplaudia uma arte de formulação socialmente crítica, afastada do que o autor compreendia como alienação do esteticismo de muitas realizações vanguardistas. Por outro lado, a campanha merquioriana e entusiasticamente favorável ao liberalismo, sobretudo ao social liberalismo, ao longo da década de 80, também ia de encontro ao procedimento político das gestões autoritárias, ao postular participações menores ou mínimas do Estado no âmbito da economia, mas uma maior e mais eficiente disposição estatal em solucionar as disparidades tão cruéis da sociedade brasileira.

Em “Padrões de construção do Estado no Brasil e na Argentina”, texto coligido em Os estados na história, sob organização de John Hall, publicado originalmente em 1986, José Guilherme Merquior salientava o centralismo e o autoritarismo como marcas da tradição política histórica de ambos os países sul-americanos. Ao se deter sobre o período do regime militar, ainda bastante recente, o ensaísta explicava terem se estabelecido governos autoritários, de centralismo socialmente forte, mas “politicamente fraco” (MERQUIOR, 1992, p.415) e não ter havido por parte deles efetiva preocupação com “produção de novos símbolos de legitimidade” (1992, p.415), senão “a legitimidade que pode ser extraída de um sucesso econômico duradouro”. (1992, p.416) A curta duração do conhecido “milagre brasileiro”, entretanto, não parecia ter compensado os longevos prejuízos sociais legados para os gestores civis. O centralismo despótico dos ditadores, segundo Merquior,

Em primeiro lugar, aumentou a distância entre a riqueza das regiões, tão visível no contraste entre o Sul rico e o Nordeste pobre – graças especialmente a uma seca de dimensões bíblicas. Em segundo lugar, o abismo entre, de um lado, os escalões superiores da sociedade e uma classe média expandida, e, de outro, a pobreza das massas, que frequentemente chegava à miséria absoluta permaneceu [...]. A face social do centralismo “despótico” realmente é assustadora: a fria máscara de uma sociedade tão abandonada. (1992, p.415)

O social-liberalismo que José Guilherme Merquior abraçou, em período no qual o regime militar agonizava, se propunha objetivamente a eliminar os maus hábitos políticos e as mazelas sociais que o País herdaria da ditadura. Em “Tarefas da crítica liberal”, clamava pela tolerância em relação a opiniões distintas, pela discussão de ideias sem ataques pessoais, o que, caso contrário, ecoaria práticas de censura; clamava também Merquior pelo equacionamento da intervenção do Estado, nem hipertrofiado, nem atrofiado, mas direcionado a se fazer de criador de “oportunidades concretas de vida e de avanço para a maioria esmagadora da população” (MERQUIOR, 1981, p.18-19). É sinceramente de se duvidar que José Guilherme Merquior tardasse a desacreditar que o jovem candidato à presidência Fernando Collor de Mello, que, em campanha, rugia contra os marajás e apelava aos “descamisados”, promoveria, se eleito, o social-liberalismo dos sonhos merquiorianos. Em “Padrões da construção do Estado no Brasil e na Argentina”, três anos antes das eleições de 1989, o autor criticava o tratamento peronista à “classe trabalhadora, que era ao mesmo tempo mimada paternalisticamente (os descamisados de Evita) e tratada como uma plebe, ao invés de respeitada, como no Ocidente keynesiano, onde assumia a condição de um ‘quarto Estado’ independente”. (MERQUIOR, 1992, p.409) Deu no que deu.

Seria, então, o caso de descolar as ideias que proferia o intelectual José Guilherme Merquior do homem José Guilherme Merquior? O chiste de Rouanet, em seu depoimento mencionado anteriormente neste artigo, em homenagem aos 10 anos de falecimento do amigo, nos incentiva a pensar nesse sentido. Mas aí não faríamos com que o autor de Razão do poema tivesse praticado a polêmica pela polêmica, as ideias pelas ideias, em mais outra versão da arte pela arte, da forma pela forma e da produção acadêmica pela produção acadêmica?

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[1] Itálicos sempre do autor; negrito nosso.

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