quinta-feira, 16 de julho de 2015

"A noiva", de Murilo Mendes


Clotilde, moça morena e sacudida,
Fica a tarde inteira na janela
Olhando a reta interminável da rua.
Todas as irmãs dela se casaram.
Clotilde fica esperando,
Esperando não sei quem.

Quando alguma moça se casa no bairro
Clotilde vai à igreja espiar,
Volta com os olhos maiores.
Nesse dia
Ela não fala com ninguém.
Quando nasce um sobrinho de Clotilde
Ela estremece da cabeça aos pés.

A noite chega
Remexendo os quadris.
Os casais passam na rua
Engolindo sombras, tontos de calor e de amor.
O cheiro das magnólias
Abafa debaixo do cheiro dos sovacos.
A curva do mar balança.
Uns sons de maxixe violento
Vêm do clube “Jasmin do Amor”.
A moça morena cisma na cama.

De repente
Um golpe de vento brusco
Entra com força no quarto,
Suspende árvores lá fora, quebra a vidraça.
Um ruído vem rodando vem rodando.
E uma visagem
Sem cheiro nem cor nem peso
Planta-se em frente de Clotilde.
As meias caem das pernas da moça,
A combinação de rendas cai do seu corpo.
A visagem fala.

“Mulher eu vim te buscar
Para as núpcias do fogo.
Haverias de ficar
Toda a vida na janela
Consumindo tua beleza?
O volume do teu seio
Pede o ímã de outros dedos...
O cheiro do teu cabelo
Não é feito pro travesseiro.
A noite do teu sovaco
Não é feita pra amanhecer.
O sangue de tuas veias
Noutro corpo há de ferver.
O teu hálito cheiroso
Outro tem que o respirar.
A luz grande de teus olhos
Vai nascer em outros olhos.
Vou te levar pro teu noivo
Que há muito tempo te espera
Desde antes tu nasceres.
Ele é forte e bonitão,
A mulher que olhou pra ele
Sente logo um arrepio.
Há muito tempo teu corpo
Pede alguém que te complete,
Venha do mar ou da terra,
Venha do fogo ou do céu.
Isto muito bem se lê
Na reza do teu olhar.
Dize adeus a Botafogo,
Ao retrato da tua mãe
Que eu vou te levar agora
Para as núpcias do fogo.”

Houve um silêncio maior
Do que o existente no mundo
Antes da invenção das radiolas.
E nunca mais ninguém viu
Clotilde nem a visagem.

(Do livro O visionário in MENDES, Murilo. Poesias completas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. pp.215-217)


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Obs.: Esta postagem é motivada pelo fato de José Guilherme Merquior ter considerado Murilo Mendes integrante da "santa trindade" da poesia moderna brasileira, ao lado de Carlos Drummond de Andrade e João Cabral de Melo Neto. Outros poemas do mesmo autor e de outros autores destacáveis dentro da crítica merquioriana devem futuramente aparecer neste blog, acompanhados ou não de algum comentário.

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