sábado, 18 de julho de 2015

Um poeta piauiense segundo José Guilherme Merquior

                                                             “O ‘povo’ não precisa de poesia ao seu nível; o que melhora o povo, o que o ergue
               a   dignidades injustamente recusadas, é dotá-lo do poder e da consciência de receber a arte [...].”
José Guilherme Merquior (Razão do poema)
 
 

Saudade! Olhar de minha mãe rezando,
E o pranto lento deslizando em fio...
Saudade! Amor da minha terra... O rio
Cantigas de águas claras soluçando.

 
Noites de junho... O caburé com frio,
Ao luar, sobre o arvoredo, piando, piando...
E, ao vento, as folhas lívidas cantando
A saudade imortal de um sol de estio.

 
Saudade! Asa de dor do Pensamento!
Gemidos vãos de canaviais ao vento...
As mortalhas de névoa sobre a serra...

 
Saudade! O Parnaíba – velho monge
As barbas brancas alongando... E, ao longe,
O mugido dos bois da minha terra...
 
 

Foi transcrito acima o soneto “Saudade”, de Da Costa e Silva. Acerca desse texto, realmente célebre, de um poeta nacionalmente reconhecido e regionalmente considerado um dos maiores senão o seu maior nome (o “Príncipe dos poetas piauienses”), José Guilherme Merquior o reputa como “o mais famoso poema sobre a saudade, o poema titular sobre a saudade, o poema que nesse sentido ficou vincado na memória popular tanto quanto a famosa canção gonçalvina”. (2000, p.41)
 
É preciso compreender os motivos do exagero elogioso na comparação entre o soneto do poeta nascido no Piauí e a “Canção do exílio” do maranhense Gonçalves Dias: Merquior escreveu o ensaio ao qual pertence a passagem citada no parágrafo anterior, sob a gratidão e o  incentivo da edição das Poesias completas de Da Costa e Silva, de 1977, preparada pelo filho deste, Alberto da Costa e Silva, quem presenteou o amigo autor de Verso universo em Drummond com um exemplar.
 
O ensaio de Merquior, intitulado “Indicações para o estudo da obra de Da Costa e Silva”, prefacia a edição revista e ampliada da Nova Fronteira, de 2000, daquelas Poesias completas, e principia com esta confissão:
 
Quando o meu caro amigo e, ele mesmo, alto poeta, Alberto da Costa e Silva, me deu sua cuidada e carinhosa edição das Poesias completas de seu pai, em 1977, eu mal conhecia – digo mal conhecia como crítico, mal conhecia em profundidade, mal conhecia na totalidade da obra – esse grande poeta. Eu o sabia um nome, e um nome historicamente importante não só na poesia do Nordeste, mas na poesia do Brasil, durante todo um período que, por sinal, foi dos mais ricos do nosso estro poético. (2000, p.37)
De certa forma, pode-se considerar o estudo de José Guilherme Merquior sobre o poeta piauiense um suplemento a De Anchieta a Euclides que, segundo o crítico carioca, por se encerrar em momento que antecede em seis anos o início da publicação da obra de Da Costa e Silva (1908), não a contempla (de fato, Os sertões, de Euclides da Cunha, vem a público em 1902). A abordagem interpretativa do ensaio-prefácio é a mesma daquela breve história da literatura brasileira de 1977, coincidentemente nascida, portanto, no mesmo ano das Poesias completas de Da Costa e Silva.
A análise merquioriana parte de uma rigorosa contextualização histórica, visando a compreender, formalmente, a obra do piauiense. Publicada essa obra entre 1908 e 1927, para José Guilherme Merquior, “Da Costa e Silva representou um papel poético do maior relevo na nossa Belle Époque”, (2000, p.37-38) a qual teria tido começo no crepúsculo do século XIX e término, no caso brasileiro, conforme garante o ensaísta, em torno de 1930, ano este de “rupturas e convulsões epitomizadas pela Revolução de 30”. (2000, p.38) Em vista da tradição periodológica de nossa historiografia, essa demarcação de um momento literário chama a atenção. Pois implica que houve coexistência da Belle Époque com o modernismo que, em 1922, faria ecoarem das salas do Teatro Municipal berros do Ipiranga nada pomposos, numa plataforma estética contrária senão adversária ao beletrismo da mesma Belle Époque.
Nesse ensaio, a contextualização da obra de Da Costa e Silva mostra-se coerente com a conceituação merquioriana de “estilos históricos”, denominação preferida à de “estilos de época”, uma vez que, se estes “podem suceder-se”, também “podem coexistir”, conforme defende em “Os estilos históricos na literatura ocidental”, (1975, p.42) capítulo de Teoria literária, volume organizado por Eduardo Portella e publicado ainda na década de 1970. Na verdade, esclarece José Guilherme Merquior, no ensaio sobre Da Costa e Silva, a “nossa Belle Époque [...], a exemplo da Belle Époque europeia, engendrou ou comportou a emergência de vanguardas”, (2000, p.38) podendo conter, assim, os movimentos modernistas liderados por Mário de Andrade, Oswald de Andrade e outros, na década de 1920.
A costura entre a dimensão histórica e o aspecto formal, na análise, vaia se apoiar nos conceitos de logopeia, melopeia e fanopeia, propostos por Ezra Pound para discriminar as linhas de força básicas da poesia. Merquior explica-os, nesta síntese:
Logopeia, para simplificar, seria a dança dos conceitos, o mundo do pensamento em poesia, seria o conceito na sua expressão poetizada. Melopeia não precisa de definição. Refere-se evidentemente ao aspecto musical, à dimensão musical do fenômeno poético. E, finalmente, fanopeia significa o poder de presentificação (e não apenas de apresentação), isto é, o fenômeno pelo qual a poesia se vertebra em imagens, não só nítidas, mas, sobretudo, potentes, sobretudo poderosas na sua irradiação conotativa. (2000, p.38)    
O domínio e a maestria em um ou outro aspecto poundiano servem ao ensaísta de critério para definir três posturas poéticas, com base nas quais se estabelece um minicânone da Belle Époque nacional. Sendo assim, Merquior aponta em Augusto dos Anjos “o mestre da nossa logopeia” e em José Albano “o grande artífice da nossa melopeia”. (2000, p.38) E, por fim, “o maior mestre da nossa fanopeia, nesse período, foi, muito provavelmente, Da Costa e Silva”. (2000, p.38-39)
A dúvida do crítico decorre de duas razões: tanto porque haveria “outros nomes que certamente tiveram grande categoria no seu artesanato poético [no âmbito da fanopeia]” quanto porque o poeta piauiense “é um grande músico do verso e não apenas um grande autor de imagens poéticas”, condição que, ademais, resultaria em “um equilíbrio poético realmente excepcional”. (2000, p.39)
Para caracterizar mais claramente o verso de Da Costa e Silva, Merquior evoca a poesia do paraibano Augusto dos Anjos, pré-expressionista, ao lado do qual o piauiense “faz uma figura de quase clássico”, que é também comparado com o mineiro Alphonsus de Guimaraens, equiparáveis em termos de musicalidade e irmanados na competente representação do simbolismo brasileiro, conquanto cada um dos dois em gerações distintas. (2000, p.39)
Um dos destaques que José Guilherme Merquior faz à versificação de Da Costa e Silva é a habilidade no emprego do enjambement, com expressivo efeito de suspensão do verso. O poeta também dominaria como poucos as técnicas do decassílabo (o verso de dez sílabas) e as do soneto. Todavia, essa afinidade classicizante não impediria o autor de Sangue de ser “um pioneiro da experimentação, um pioneiro do verso longo e do verso livre, e um pioneiro na reexperimentação com várias formas passadas, como a balada e o vilancete”. (2000, p.40)
No que se refere à temática, José Guilherme Merquior distingue a poesia da natureza, a de lamento da esposa falecida, como ocasiões especiais de nos depararmos com toda a competência imagística do poeta piaueinse. A arte de suas paisagens, dentre as quais se encontram as do soneto “Saudade”, leva Merquior a recordar a ut pictura poesis romântica de Castro Alves. Seu pranto de viúvo repercutiria o célebre soneto de Machado de Assis, “À Carolina”. E nas reflexões morais da-costianas se enquadraria “Vanitas vanitatum”, “um dos maiores sonetos da língua portuguesa, e não apenas da literatura brasileira”, (2000, p.43) que aqui convém, tão alta a conta em que o tem o crítico, transcrever:
 
Não fujas ao destino, nem te afastes
Da rota que te foi traçada um dia,
Que a vida de surpresas e contrastes
Tem de ser fatalmente o que seria.
 
O tempo, inutilmente, não no gastes
Em rumo oposto à estrela que te guia;
Mas segue em tudo o verbo do Eclesiastes,
Profundo e amargo de sabedoria.
 
Não te afoites de encontro à própria sorte,
Porque, sendo imutáveis, são eternas
As leis da vida como as leis da morte;
 
E, se as tuas vaidades tanto externas,
Não penses que, sendo homem, não és forte
E que, sendo mortal, não te governas.
 
 
Merquior discorre sobre a linguagem de Da Costa e Silva para ressaltar que sua “sintaxe levemente alambicada” não se converteria, como no parnasiano Alberto de Oliveira, em “princípio estilístico”. (2000, p.40) O comentário enseja a aproximação do piauiense com poeta não brasileiro, Rubén Darío, em cuja obra, como na de outros da mesma época, “o virtuosismo, a capacidade de mudar de formato poético com igual proficiência era muito acentuada, sem que caíssem numa poesia particularmente árdua, particularmente difícil e, muito menos, hermética”. (cf. 2000, p.41) Já os últimos parágrafos do ensaio se voltam para a disseminada comunhão, realizada não apenas pela poesia de Da Costa e Silva, mas também pela de outros brasileiros do passado, da linguagem culta com a oralidade. Merquior esclarece:
O que eu quero assinalar é essa combinação de uma poesia que não é popular na sua forma, porque é, evidentemente, culta na sua inspiração e na sua execução, como um sentimento de oralidade, que é exatamente o elemento que vai permitir aquela comunicatividade intensa e imediata que esses poetas – um Bilac, um Da Costa e Silva – conseguiram ter e manter, de tal forma a se fazerem sabidos, a serem declamados, a serem guardados na memória de quantos conhecessem e amassem poesia no Brasil. (2000, p.44)
Sempre fazendo jus à autoidentificação orgulhosa de “historiador literário”, (2000, p.45) o ensaísta retoma a observação do antropólogo francês Roger Bastide, para quem a linguagem difícil e/ou culta de boa parte dos autores brasileiros tardo-oitocentistas, como Euclides da Cunha, Olavo Bilac, Machado de Assis, Cruz e Sousa, teria pronunciada motivação nas condições desses escritores na sociedade: “Tudo se passava como se essas proezas de ordem literária e verbal fossem títulos de nobreza da parte de quem não os possuía na sua origem social”. (2000, p.44) Cumpre aqui salientar a importância para Merquior dessa compreensão literário-sociológica de Bastide, que será aplicada em, pelo menos (de que eu me lembre), duas outras passagens da obra merquioriana: no texto já aqui referido “Os estilos históricos na literatura ocidental” (cf. 1975, p.80) e no “Em busca do pós-moderno”, coligido em O fantasma romântico e outros ensaios (cf. 1980, p.18).
José Guilherme Merquior confessa intrigá-lo esse enlace de uma linguagem culta e seu razoável grau de dificuldade de compreensão para o público e o leitor médios, com uma elevada eficiência comunicativa, ou mesmo com uma “comunicatividade popular”. (2000, p.45) Tal caráter, ainda comum na literatura dos tempos de Da Costa e Silva, parecia a Merquior estar desaparecendo desde a hegemonia modernista – donde a proposição de uma série de perguntas:
[...] o que fez com que, num determinado horizonte histórico da cultura brasileira, formas de alta cultura fossem dotadas desse alto poder de inserção social? Poder este que nem sempre formas de altas culturas posteriores – e eu digo isto sem nenhum prejuízo da alta qualidade dessas formas – conseguiram reaver ou manter. Por que hoje a maioria das altas formas de cultura do país são mais divorciadas da memória e da sensibilidade popular? Por que esses fenômenos de classe média culta não se repuseram ou não se refizeram na nossa experiência histórica mais recente? (2000, p.45)
Não pretendo solucionar o “quase enigma” que a poesia de Da Costa e Silva instigou em nosso crítico e pensador, “quase enigma” com o qual termina seu ensaio. Mas creio que Merquior pensava nas consequências da cultura pop, seus novos meios, as novas artes e um poder de se distribuir, chegando ao público (cada vez mais, a partir de então, “-consumidor”) inexistentes na época de Olavo Bilac e na época de Da Costa e Silva. Seja como for, a perda da comunicatividade popular da poesia constituía preocupação antiga, nas reflexões merquiorianas. Na sua postura judicativa, e não somente interpretativa de crítico literário, em “Crítica, razão e lírica”, ensaio que integra Razão do poema (1965), José Guilherme Merquior cobra da criação poética uma hegemonia da razão, dado que o “predomínio do sentimental parece não ofender muito a finalidade comunicativa da poesia”, mas “nada tem a comunicar, não transmite no interesse coletivo”; já a “presença exagerada da fantasia, ao contrário, prejudica a comunicação poética até o ponto em que o poeta se torna objeto ininteligível”. (2013, p.183) Mais adiante, o ensaísta enaltece e incentiva a confluência da linguagem culta e da popular, pois a poesia “Precisa da amplidão que só a forma culta permite, mas, simultaneamente, repudia qualquer condição ‘preciosa’”. (2013, p.208) Ainda em Razão do poema, o ensaio “Evtuchenko” toca o mesmo problema, conquanto sem a mesma abordagem, e conclui:
[...] a simples ocorrência de uma poesia como a de Voznesenski (mais requintada e mais fina que a do nosso poeta [Evtuchenko], e não obstante igualmente declamada para públicos numerosos e delirantes) prova que o recurso à prática oral da poesia, no século XX, numa sociedade alfabetizada (no Brasil, alfabetizanda [ainda hoje, acrescento]) não significa obrigatoriamente decréscimo de qualidade poética – tal como nunca significou no passado – embora exija, como é natural, vários ajustes de estilo. (2013, p.153)
Talvez também Merquior tivesse em mente, como uma razão – razão do não poema – para a perda da comunicatividade popular da poesia toda nossa incompetência permanente e cruel em questões educacionais. É o que a epígrafe deste post quer sugerir.
 
 
Referências bibliográficas
DA COSTA E SILVA. Poesias completas. 4ª ed. (rev. e ampl.) Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000.
 
MERQUIOR, José Guilherme. “Indicações para o estudo da obra de Da Costa e Silva” in DA COSTA E SILVA. Poesias completas. 4ª ed. (rev. e ampl.) Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000. pp.37-45.
______. “Os estilos históricos na literatura ocidental” in PORTELLA, Eduardo et alii. Teoria literária. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1975. pp.40-92.
______. Razão do poema: ensaios de crítica e estética. 3ª ed. São Paulo: É Realizações, 2013.


 

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