terça-feira, 26 de julho de 2016

Três equívocos comuns em torno de Merquior

A extensão, a pluralidade, a erudição e a complexidade da obra de José Guilherme Merquior, nada fácil nem simples de se dominar por completo, parecem ocasionar equívocos comuns, cometidos mesmo por quem já estabeleceu intimidade com o pensamento do grande ensaísta.

Um que se deve eliminar com urgência, por conotar escabroso desleixo, é a pronúncia “Meuquior”, não poucas vezes ouvida, seja da boca de jornalistas, seja da de comentaristas da obra de Merrrrrrrrrquior. Há, sim, a variante do sobrenome “Melquior”, mas cumpre – prescinde dizê-lo – respeitar, na fala, a grafia onomástica dessa família. Não me furto a divulgar, a propósito disso, o trocadilho que minha esposa soltou, ao tomar conhecimento desse feio deslize: “ei, olha o meu ‘qui ó!”

Outro equívoco comum, este de fato decorrente das dificuldades em lidar com o conjunto titânico dos textos do autor, é rotulá-lo de neoliberal (assumo: eu mesmo o cometi há alguns anos). A não ser que entendamos neoliberalismo em sentido elástico, como toda e qualquer versão mais recente de liberalismo. José Guilherme Merquior, particularmente no último decênio de vida, foi um pensador liberal, que se identificou com o ideário do social-liberalismo, uma vez que preconizava o equilíbrio entre a liberdade da economia de mercado, a mais eficaz forma de produção de riqueza, e a igualdade social, a ser promovida ou preservada por intervenções do Estado. Sendo assim, a solução de Merquior não é nem o Estado mínimo do neoliberalismo, nem o Estado máximo do socialismo-comunismo. A respeito do tema, deve-se ler “Tarefas da crítica liberal” de As formas e as ideias (1981) e os vários ensaios de O argumento liberal (1983).

O terceiro equívoco comum foi cometido por ninguém menos do que Sergio Paulo Rouanet, um dos mais próximos amigos de José Guilherme Merquior, sobre o qual afirma que “[...] descartando Freud, Merquior abriu mão de um valiosíssimo aliado na cruzada iluminista. Freud é o último e mais radical dos iluministas” e ainda: “Por ignorar Freud, Merquior privou-se da ajuda desse Voltaire da alma, e reduziu seu poder de fogo diante dos verdadeiros inimigos do espírito.” (2014, p.366 – destaques meus)

Rouanet tem em vista, nesse seu texto de homenagem ao autor falecido tão jovem, a célebre pergunta retórica e introdutória de As ideias e as formas: “É possível atacar o marxismo, a psicanálise e a arte de vanguarda sem ser reacionário em política, ciências humanas e estética?” (1981, p.11) Contudo, note-se que a frase não diz “Freud”, e sim “psicanálise”, assim como não diz “Marx”, e sim “marxismo”. Merquior anunciava, naquele livro aparecido juntamente com o início da década de 80, que passaria a investir contra, nas palavras certas de Rouanet, aquilo “em que a psicanálise se transformou”, e não propriamente contra o legado freudiano. Para termos a certeza dessa distinção, e de que Merquior compreendia o pai da psicanálise, sim, como um iluminista, e não o contrário, basta lermos as primeiras linhas de “O avestruz terapêutico”, ensaio contido em O elixir do apocalipse (1983):

Muita gente boa ainda pensa que a psicanálise é uma teoria do distúrbio mental. Isso é o que ela promete, mas não cumpre. No duro mesmo, a psicanálise não é uma medicina da mente – é uma enfermidade do intelecto, um projeto iluminista que virou superstição burguesa. (p.63 – destaque meu)

Não obstante o deslize tão localizado, o texto de Sergio Paulo Rouanet não deixa de oferecer uma bela chave de compreensão do pensamento merquioriano, compreensão que será incrementada, aliás, com a leitura de livros como As razões do iluminismo (1987), título que por si só nos força a recordar o nome do ensaísta de Razão do poema.

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Vale aqui noticiar a publicação recente de Rouanet 80 anos: democracia, modernidade, psicanálise e literatura, pela editora É Realizações, volume que registra as discussões ouvidas em simpósio dedicado ao intelectual, realizado no Rio de Janeiro, em 2014. Conferir nesta página.

Referências bibliográficas

MERQUIOR, José Guilherme. As ideias e as formas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981.

______. O elixir do apocalipse. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983.


ROUANET, Sergio Paulo. “Merquior: obra política, filosófica e literária” in MERQUIOR, José Guilherme. O liberalismo: antigo e moderno. 3ª ed. ampl. São Paulo: É Realizações, 2014. pp.360-370. 

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